A ingressou no antigo Leal Senado de Macau em 27 de Setembro de 1988, e desde então exercia as funções de fiscal no “Núcleo de Controlo de Obras de Valas” da Divisão de Vias Públicas. No intuito de obter benefícios ilegítimos, A convencia, mediante diferentes formas, os empreiteiros das obras a realizar na área de que era responsável a subadjudicarem as obras por um preço mais alto a favor das empresas por ele apresentadas e, depois, subadjudicava privadamente as obras a outras empresas que ofereciam preços mais baixos, para estas levarem a cabo as obras, de forma a obter daí a diferença de preço. Com a preocupação de que A aproveitava as suas competências para afectar o progresso das obras, os empreiteiros entregavam as obras a A ou subadjudicavam-nas às empresas por ele recomendadas. A, depois de receber o pagamento das obras dos empreiteiros, apropriava-se da parte desse pagamento que devia entregar as empresas subadjudicadas. Além disso, A contactava os donos das construtoras todos os anos antes ou durante o Ano Novo Chinês, exigindo-lhes que lhe comprassem fogo de artifício. Ainda que o preço do fogo de artifício de A fosse pelo menos o dobro do preço do mercado, esses donos ainda assim concordavam em comprar esse fogo de artifício devido à qualidade de A como fiscal e para evitar que ele colocasse deliberadamente obstáculos às obras deles. A par do dito, A também apresentou intencionalmente declarações inexactas no que respeita aos seus rendimentos e interesses patrimoniais. Após o julgamento, o Juízo Criminal do TJB condenou A pela prática de 19 crimes de abuso de poder, 1 crime de abuso de confiança (valor consideravelmente elevado), 1 crime de abuso de confiança (valor elevado), 1 crime de branqueamento de capitais e 1 crime de prestação intencional de informações falsas na apresentação da Declaração de Bens Patrimoniais e Interesses. Operando-se o cúmulo jurídico das penas aplicadas pelos 23 crimes, foi A condenado na pena de prisão efectiva de 8 anos.
Inconformado, A recorreu para o Tribunal de Segunda Instância, defendendo que os 4 crimes de abuso de poder envolvendo obras deviam ser convolados para 1 crime de abuso de poder e que a sentença a quo errou na determinação do número de condutas. Referiu ainda que, caso o Tribunal de Segunda Instância assim não entendesse, devia considerar que os 4 crimes de abuso de poder envolvendo obras acima referidas e os 9 crimes de abuso de poder referentes à compra de fogo de artifício preenchiam os requisitos do crime continuado e deviam ser considerados como crime de abuso de poder praticado sob forma continuada.
O Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância conheceu do caso. Apontou o Tribunal Colectivo que estipula no artigo 29.º do Código Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos (concurso de crimes). O tipo de crime refere-se à descrição na lei de um comportamento criminoso. O Tribunal Colectivo concordou com o parecer do Ministério Público, referindo que dos dados constantes dos autos e dos depoimentos testemunhais resultou que A era responsável pela concessão de cada obra até à sua conclusão, e depois repetia todos os procedimentos nos novos projectos, daí verificou-se que A participava pessoal e directamente em cada obra individual. Como cada obra era autónoma, não há nada de errado em concluir que A realmente abusou, por quatro vezes, do poder inerente à sua função com vista a obter para si benefícios ilegítimos. Quanto à questão da prática continuada de crimes de abuso de poder, entendeu o Tribunal Colectivo que, no caso em apreço, embora o modus operandi de A fosse semelhante e os interesses jurídicos prejudicados fossem iguais, até o dolo poderia ser considerado um dolo global, mas não há nenhuma situação exterior que pudesse atenuar especialmente a culpa. Pelo contrário, A estava, na verdade, apenas a aproveitar as mesmas “facilidades” externas para obter, confiante e repetidamente, benefícios ilegítimos em várias obras rodoviárias adjudicadas através da qualidade de fiscal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (agora Instituto para os Assuntos Municipais). Daí verificou-se o alto grau de dolo (culpa) e o grau de culpabilidade não diminuiu gradualmente. Por outro lado, no que diz respeito aos crimes de abuso de poder cometidos por A, relativos à exigência a terceiros de comprarem fogo de artifício, com excepção dos telefonemas feitos durante o Ano Novo Chinês serem idênticos, cada vez que A exigia ao responsável da cada empresa para comprar fogo de artifício, já se passara um ano. A situação de cada indivíduo é bem diferente ao longo do ano, pelo que se verifica que no processo da prática dos delitos não existe “uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. Esta situação externa é o ambiente do crime. Por outras palavras, cada vez que A cometia um crime, enfrentava uma situação exterior diferente, e ele tinha de ajustar o modus operandi de acordo com a situação real naquela altura. Portanto, não existia uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa de A. Pelo exposto, as condutas de A não formam o crime continuado previsto no n.º 2 do artigo 29.º do Código Penal.
Nos termos expostos, o Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância julgou improcedente o recurso de A, mantendo a decisão a quo.
Cfr. Acórdão proferido no processo n.º 614/2022 do Tribunal de Segunda Instância.