Nos autos de recurso penal n.º 372/2021, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que a declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar para candidatura à atribuição de habitação social consubstancia um documento tal como definido na al. a) do artigo 243.º do Código Penal e as falsas declarações do candidato na declaração de rendimentos e património líquido integram a prática do crime de falsificação de documento p.p. pela alínea b) do n.º 1 do artigo 244.º do mesmo Código, condenando, assim, os arguidos pela prática do crime de falsificação de documento. O Ministério Público interpõe para o Tribunal de Última Instância o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão supracitado, alegando que este acórdão está em oposição ao acórdão do Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal que aí correram termos sob o n.º 504/2021, relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação. Nos autos do Processo n.º 504/2021, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que a referida declaração não é um documento no sentido jurídico penalmente relevante resultante da al. a) do artigo 243.º do Código Penal e a falsidade dessa declaração não preenche aquele tipo legal de crime de falsificação de documento, pelo que manteve a decisão de absolvição do Tribunal Judicial de Base.
Na tese do Ministério Público, em ambos os processos supra mencionados o Tribunal de Segunda Instância pronunciou-se expressamente sobre a questão de saber se a declaração de rendimentos e património líquido integra ou não a definição de “documento” constante da al. a) do artigo 243.º do Código Penal e se constitui ou não o crime de falsificação de documento p.p. pela al. b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal, tendo proferido acórdãos em sentidos opostos.
O Tribunal de Última Instância procedeu ao julgamento ampliado do recurso.
Indicou o Tribunal Colectivo que no presente recurso está em discussão a questão de saber se a declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar prestada por candidato à habitação social deve ser considerada como “documento” referido na al. a) do artigo 243.º do Código Penal e as declarações falsas ou inexactas apresentadas por candidato integram, ou não, o crime de falsificação de documento p.p. pela al. b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal. Entendeu o Tribunal Colectivo que para o crime ora em causa, é essencial saber como é que se deve qualificar e determinar o que é o documento, tal como é definido. O Código Penal define o documento em três aspectos, a saber: o documento terá que representar materialmente uma declaração de vontade humana; o mesmo terá que ser apto a provar aquilo que contém e os factos juridicamente relevantes; e, o autor deve ser reconhecível. O facto juridicamente relevante é todo o facto que cria, modifica ou extingue uma relação jurídica.
Indicou o Tribunal Colectivo que a candidatura à habitação social em causa no presente recurso é regulada pelos Regulamento Administrativo n.º 25/2009 e Despacho do Chefe do Executivo n.º 296/2009. Para se candidatarem ao concurso, os candidatos devem entregar o boletim de candidatura, juntando também a declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar, devidamente preenchidos e assinados. Entendeu o Tribunal Colectivo que a declaração é corporizada em escrito, é inteligível pelos destinatários e permite reconhecer o seu autor, destinando-se a demonstrar a situação económica desfavorecida em que se encontra o agregado familiar interessado em candidatar-se ao arrendamento de habitação social, que é, sem dúvida, um facto juridicamente relevante para efeitos de atribuição de habitação social, pois só os agregados familiares que se encontrem naquela situação económica é que podem ter a oportunidade de ser-lhes atribuída uma habitação social, caso contrário serão excluídos. Por outras palavras, a declaração em causa tem a idoneidade para provar a situação concreta do património dos candidatos e provar um facto susceptível de criar uma relação jurídica. O Tribunal Colectivo fez notar que, apesar do facto de a legislação supradita já ter sido revogada pelas novas leis, continua a ser no regime actualmente vigente um dos requisitos necessários para a candidatura à habitação social a “situação económica desfavorecida” e que os candidatos não deixam de ter o dever de entregar o boletim de candidatura ao Instituto de Habitação, acompanhado do documento comprovativo de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar para efeito de apreciação. No regime ora vigente já não se encontra nenhuma referência expressa à chamada “declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar”, a qual não deixa de ser, no entanto, e conforme a lógica das coisas, parte integrante do boletim de candidatura à habitação social preenchido e apresentado pelos candidatos. Entendeu o Tribunal Colectivo que é de considerar como “documento” referido na alínea a) do artigo 243.º do Código Penal a declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar apresentada pelos interessados em candidatar-se ao concurso para efeito de atribuição de habitação social e que os candidatos que prestem falsas declarações sobre os rendimentos e o património líquido dos elementos do agregado familiar na declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar ou no boletim de candidatura à habitação social, cometem o crime de falsificação de documento previsto e punível pela alínea b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal.
Face ao exposto, O Tribunal Colectivo do Tribunal de Última Instância decidiu negar provimento ao recurso e, nos termos do artigo 427.º do Código de Processo Penal, fixou a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da RAEM: “As falsas declarações constantes do boletim de candidatura à habitação social, incluindo na declaração de rendimentos e património líquido dos elementos do agregado familiar a que se refere a alínea 3) do n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social aprovado pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 296/2009, integram a prática do crime de falsificação de documento previsto e punível pela alínea b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal.” Assim, ordenou o cumprimento do disposto no artigo 426.º do Código de Processo Penal, no sentido de se publicar o acórdão acima referido no Boletim Oficial da RAEM.
Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, proferido no processo n.º 19/2022.
Nos termos do art.º 426.º do Código do Processo Penal, o referido acórdão de uniformização de jurisprudência vai ser publicado no Boletim Oficial da RAEM, I Série, de 13 de Março de 2023.