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Na sequência duma expropriação não registada, a RAEM e o IAM foram condenados a restituir o terreno privado expropriado e a ressarcir os danos causados

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância
2020-09-27 18:41
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A Sociedade A (Autora) intentou uma acção contra a Região Administrativa Especial de Macau (1ª Ré) e o então Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (2º Réu) no Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, pedindo que fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre um prédio rústico constituído pelo terreno sito na Taipa, junto à Estrada Almirante Magalhães Correia, à Estrada da Ponta da Cabrita e à Avenida Padre Tomás Pereira, com a área total de 24.498 m2, e que fossem os Réus condenados a restituir-lhe o dito terreno e a indemnizá-la pelos danos sofridos ao longo dos anos devido à privação do gozo do mesmo. Os Réus contestaram e reconvieram, pedindo que se declarasse o terreno integrado no domínio público da Região e, consequentemente, se ordenasse o cancelamento de todos os registos prediais de transmissão posteriores a 1997.

Após a produção de prova, foi apurado o seguinte:

Em 1913, B adquiriu, por compra, o terreno em causa e registou a aquisição. No ano de 1918, o mesmo terreno foi expropriado pelo então Governo de Macau para a construção duma carreira de tiro, expropriação essa que nunca foi registada. No ano de 1994, o Governo de Macau construiu nesse terreno estradas de acesso à Ponte da Amizade, ocupando uma área total de 4.235 m2. Em Maio de 1997, através duma escritura pública de habilitação de herdeiros lavrada no 4º Cartório Notarial de Lisboa, Portugal, C, viúva de B, e, posteriormente, os seus herdeiros D e E, adquiriram por sucessão hereditária o referido terreno, tendo efectuado em Macau os registos prediais correspondentes. Em Agosto de 1997, a Companhia F adquiriu o terreno em questão a D e E, aquisição essa que foi registada. Mais tarde, em 1999, o IACM ocupou uma parte desse terreno, onde instalou um depósito de pneus. No ano de 2005, a Sociedade A comprou o terreno à Companhia F e registou a aquisição, mas nunca chegou a aproveitá-lo, já que se encontrava o mesmo murado e vedado por portões munidos de fechaduras, cujas chaves estavam na posse exclusiva do IACM, que impedia, dessa forma, o acesso de outros. No ano de 2008, veio o IACM ocupar outras partes do terreno, construindo nelas barracas e alpendres. Em Janeiro de 2009, a Autora solicitou ao IACM que lhe devolvesse o terreno até 9 de Março de 2009, o que este se recusou a fazer.

Apreciando os autos, o Tribunal Judicial de Base entendeu necessária uma distinção entre duas parcelas do terreno a que se reportam os autos: no que concerne à parcela afecta pelo Governo de Macau à construção de vias públicas, com a área de 4.235 m2, tendo em conta que as estradas são coisas públicas, que estão fora do comércio, não há dúvidas de que essa parte já pertence ao domínio público da RAEM e, como tal, não pode ser objecto de propriedade privada. Em relação aos restantes 20.263 m2, nota-se que esta parcela passou a integrar o domínio privado da RAEM por ter sido expropriada pelo então Governo de Macau em 1918. Contudo, o Governo nunca registou a referida expropriação, nem invocou o seu direito de propriedade sobre o terreno ou o reivindicou dos adquirentes, pelo que a Autora, no momento da aquisição deste terreno junto da Companhia F, não sabia que o mesmo havia sido expropriado. Acresce que o registo da aquisição da Autora (em 20 de Setembro de 2005) foi anterior à data da reconvenção dos Réus (em 23 de Março de 2010). Sendo assim, nos termos do art.º 284.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código Civil, a Autora, enquanto terceira de boa fé, adquiriu o direito de propriedade sobre esta parcela. O 2º Réu, ao recusar-se a entregar o terreno à Autora, impediu-a de lucrar com o seu arrendamento, incorrendo, naturalmente, na obrigação de indemnizar a Autora pelos danos que lhe causou. Nestes termos, o Tribunal Judicial de Base julgou parcialmente procedente a acção intentada pela Autora, reconhecendo o seu direito de propriedade sobre a parcela do terreno a que se referem os autos com a área de 20.263 m2, e condenando o 2º Réu a restituí-la à Autora e pagar-lhe uma indemnização de MOP$45.064.560,00 (correspondente ao valor das rendas desde 9 de Março de 2009 até 9 de Novembro de 2014) e ainda no montante de MOP$702.460,00 por cada mês a contar de 10 de Novembro de 2014, acrescida de juros legais. Reconheceu, entretanto, como pertencendo ao domínio público da RAEM a parcela utilizada para a construção de vias públicas, com a área de 4.235 m2, e ordenou a correcção do cadastro e do registo predial de acordo com o decidido, absolvendo as partes dos demais pedidos.

Todos inconformados, a Autora e os Réus interpuseram recursos para o Tribunal de Segunda Instância.

O Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância conheceu da causa, asseverando que a expropriação pelo Governo de terrenos privados para fins de utilidade pública tem que ser registada para ser oponível a terceiros. No caso sub judice, o aludido terreno, quando foi adquirido pela Autora, estava definitivamente registado em nome do transmitente, Companhia F. Ao registar tal aquisição, a Autora ficou a beneficiar da presunção de propriedade derivada do registo predial. Não se verificando qualquer irregularidade na escritura de habilitação de herdeiros mediante a qual os herdeiros de B adquiriram o terreno em apreço, nem constando do seu registo predial qualquer menção à alegada expropriação, e, ainda por cima, sendo o terreno considerado sempre propriedade privada segundo as respectivas plantas cadastrais, impõe-se concluir que a Autora é terceira de boa fé, que desconhecia, sem culpa, qualquer vício dos negócios em causa, devendo, como tal, ser protegida à luz do art.º 284.º do Código Civil. Portanto, não merece censura a decisão do Tribunal a quo que reconheceu a Autora como titular do direito de propriedade sobre a parcela de 20.263 m2 do terreno vertido nos autos, e condenou o 2º Réu a restituí-la à Autora além de a indemnizar pelos danos sofridos com a perda de rendas.

No entanto, no que respeita à outra parcela do referido terreno, com a área de 4.235 m2, pronunciou-se o Tribunal Colectivo no sentido de que pelo facto de esta parcela ter sido utilizada para a construção de vias públicas, não se pode ordenar à 1ª Ré a sua devolução, atento o “princípio da intangibilidade da obra pública” e o disposto nos art.ºs 326.º e 327.º do Código Civil de Macau. Porém, em virtude da existência da culpa da 1ª Ré, traduzida na ausência de pedido de informação junto da conservatória competente quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o terreno antes de nele iniciar as obras, ela sempre está obrigada a pagar à Autora indemnizações respectivas. Nesta conformidade, procederá o recurso interposto pela Autora nesta parte.

Face ao exposto, o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso interposto pela Autora, e improcedentes os recursos interpostos pelos Réus, mantendo, pois, a decisão proferida que condenou o 2º Réu a restituir à Autora o terreno com a área de 20.263 m2 e pagar-lhe a indemnização de MOP$45.064.560,00 e ainda no montante de MOP$702.460,00 por cada mês a contar de 10 de Novembro de 2014, e, para além disso, condenando a 1ª Ré a pagar à Autora uma indemnização no valor de HKD$30.275.000,00 (equivalente a MOP$31.183.250,00) relativamente àquela parcela de 4.235 m2 do terreno em causa, acrescida de juros à taxa legal a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento.

O Ministério Público (em representação da RAEM) já interpôs recurso.

Cfr. Acórdão do TSI, no Processo n.º 532/2015.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

27/09/2020


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