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TUI: é nula a obtenção do bilhete de identidade de residente permanente de Macau com base em falsa paternidade

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância
2022-09-26 17:54
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O Tribunal de Última Instância julgou sucessivamente dois processos de obtenção do bilhete de identidade de residente permanente de Macau com base em falsa paternidade.

No processo n.º 53/2021, A nasceu em Macau no ano de 1994. Conforme as informações constantes do registo de nascimento de A, o seu pai B é residente permanente de Macau, e a sua mãe C é residente do Interior da China, pelo que a Direcção dos Serviços de Identificação emitiu-lhe o bilhete de identidade de residente de Macau. Depois de atingir a maioridade, A começou a ter dúvidas sobre a identidade do seu pai. Em 2016, A intentou uma acção de impugnação da paternidade no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base. Realizado o teste de paternidade, o Juízo de Família e de Menores proferiu sentença em 2018, em que declarou que B não era o pai biológico de A, ordenou o cancelamento do registo de nascimento de A no que se refere ao seu pai, e declarou que o residente de Hong Kong D era o pai biológico de A. Posteriormente, A requereu à DSI a alteração dos dados de identificação do seu pai, e apresentou o registo de nascimento do qual consta que o seu pai é D. Para o efeito, a DSI solicitou informações à Conservatória do Registo Civil, que por sua vez, forneceu a referida sentença proferida pelo Juízo de Família e de Menores. Por não serem residentes de Macau os pais de A à data do seu nascimento, a DSI declarou nulo o acto administrativo de primeira emissão do BIR a A, e nulos os posteriores actos de substituição e renovação do seu bilhete de identidade de residente permanente, e de emissão do passaporte da RAEM, bem como cancelou o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte de A.

No processo n.º 56/2021, E nasceu em Macau no ano de 1996. Consta do registo de nascimento de E que o seu pai F é residente de Macau, e a sua mãe G é residente do Interior da China. Em Novembro do mesmo ano, conforme as informações constantes do registo de nascimento de E, a DSI emitiu-lhe o bilhete de identidade de residente de Macau. Em 2018, ao candidatar-se à universidade, E teve dúvidas sobre a identidade do seu pai, pelo que realizou o teste de paternidade, cujo resultado revelou que o seu pai biológico era H, em vez de F. Em 2017, o Juízo de Família e de Menores do TJB proferiu sentença, pela qual ordenou o cancelamento do registo de nascimento de E no que se refere ao seu pai, e do registo passou a constar que o pai era H. Visto que à data do nascimento de E, os seus pais biológicos não eram residentes de Macau nem residiam legalmente em Macau, a DSI declarou nulos os actos de emissão e de substituição do BIR de E, e cancelou o seu bilhete de identidade de residente permanente e o seu passaporte da RAEM.

A e E interpuseram recursos hierárquicos necessários das supracitadas decisões à então Secretária para a Administração e Justiça, mas viram os seus recursos rejeitados. Inconformados com o assim decidido, A e E interpuseram recursos contenciosos para o Tribunal de Segunda Instância. Foram proferidos acórdãos pelo TSI, negando-se provimento aos recursos e mantendo-se as decisões recorridas.

Ainda inconformados, A e E recorreram para o TUI, entendendo que os acórdãos recorridos qualificaram erradamente os actos de emissão do BIR e do passaporte como actos nulos, e não atribuíram certos efeitos jurídicos aos actos recorridos nos termos do art.º 123.º, n.º 3 do CPA, violando os princípios da proporcionalidade, da justiça e da boa-fé.

O Tribunal Colectivo do TUI conheceu dos casos. No que concerne à nulidade dos actos administrativos, indicou o Tribunal Colectivo que, os “elementos essenciais” previstos no n.º 1 do art.º 122.º do CPA referem-se a quaisquer elementos importantes que conduzam à impossibilidade de qualificação dos actos como actos administrativos, ou elementos cuja falta seja tão grave que o acto deve ser considerado nulo. Por outro lado, para além dos elementos comuns dos actos administrativos em geral, os elementos essenciais dos actos administrativos também incluem aqueles que devam ser considerados indispensáveis em função do tipo e das circunstâncias concretas dos actos administrativos. No caso sub judice, entendeu o Tribunal Colectivo que a primeira emissão do BIR, pela Administração, a A e E, carece, efectivamente, de elementos que devem ser considerados “essenciais” em virtude das circunstâncias concretas desse acto, ou seja a veracidade do facto de que A e E possuem a qualidade de residente de Macau por os seus pais serem residentes de Macau, pelo que são nulos os respectivos actos. Atendendo à força probatória do BIR, a emissão do BIR pela Administração é um acto de prova, comprovativo da qualidade de residente do titular do BIR e da sua residência legal em Macau. Desta forma, a veracidade do facto provado (A e E têm a qualidade de residente de Macau) deve ser considerada como elemento essencial dos actos administrativos, e a falsidade desse facto equivale à falta absoluta do conteúdo ou objecto do acto administrativo, pelo que, nos termos do art.º 122.º, n.º 1 do CPA, são nulos os actos administrativos da primeira emissão do BIR a A e E, por falta de elementos essenciais, e também são nulos os posteriores actos de substituição e renovação do bilhete de identidade de residente permanente de Macau, e de emissão do passaporte da RAEM.

Quanto à questão de atribuição de certos efeitos jurídicos aos actos recorridos conforme o art.º 123.º, n.º 3 do CPA, indicou o Tribunal Colectivo que, o mero decurso do tempo não é suficiente para que os actos nulos produzam efeito jurídico. Tal efeito só pode ser produzido com base nos princípios jurídicos gerais, tais como os princípios da tutela da confiança, da boa-fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, de enriquecimento sem causa e da prossecução do interesse público. Pode-se recorrer a estes princípios que vinculam a Administração para resolver a situação da injustiça decorrente dum acto administrativo nulo. Se a nulidade do acto administrativo tiver sido causada pelas condutas do próprio particular (por exemplo, coação ou crime, até simples dolo ou má-fé), será absolutamente impossível a atribuição do efeito putativo que lhe seja favorável. Não obstante A e E não tenham praticado qualquer acto de má-fé, dolo ou criminalidade, é facto irrefutável de que constaram dos seus registos de nascimento as paternidades que não correspondiam à verdade, e tal situação foi causada pelas falsas declarações prestadas pelas suas mães na altura à autoridade administrativa responsável pelo registo de nascimento, actuação essa que constituiu, pelo menos, o “simples dolo”, com o objectivo de obter a qualidade de residente de Macau para os seus filhos recém-nascidos. Obviamente, os respectivos actos foram praticados no interesse de A e E, sendo estes os principais beneficiários.

Como é sabido, o legislador estabeleceu um regime jurídico rigoroso da obtenção da qualidade de residente de Macau e da emissão do BIR. O Decreto-Lei n.º 6/92/M, alterado pelo Decreto-Lei n.º 63/95/M, o Decreto-Lei n.º 19/99/M, e a Lei n.º 8/2002 regularam, sucessivamente, o regime do bilhete de identidade de residente de Macau. O art.º 24.º da Lei Básica da RAEM e os art.ºs 1.º e 3.º da Lei n.º 8/1999 previram especificamente quem são residentes permanentes e não permanentes de Macau, delimitaram o âmbito dos residentes permanentes, fixaram critérios rigorosos para os filhos obterem a qualidade de residente ou de residente permanente de Macau, e estipularam que são condições prévias de obtenção da qualidade de residente ou de residente permanente de Macau pelos filhos o “nascimento em Macau”, e “era residente de Macau o pai ou a mãe à data do seu nascimento”. Se o interessado não satisfizer as condições legais, é claro que não pode a autoridade competente emitir o BIR; se for supervenientemente detectado que não estavam reunidos os requisitos legais, deve a Administração declarar nulo o respectivo acto administrativo, e cancelar o documento de identificação emitido, sob pena de violação das disposições legais correspondentes, nomeadamente o art.º 24.º da Lei Básica e o art.º 1.º da Lei n.º 8/1999. Se a nulidade do acto de obter o BIR por meio ilícito fosse sanada com o mero decurso do tempo, então antes de ser alterado o regime de perfilhação pelo qual se reconhece a paternidade apenas através da declaração do progenitor, previsto pelos art.ºs 1703.º e segs. do Código Civil, bem como o regime de registo de perfilhação previsto pelo art.º 104.º do Código do Registo Civil, para que sejam impostas medidas ao reconhecimento da paternidade ao declarar a “perfilhação”, tais como perícias médicas, a atribuição de “efeitos putativos” ao acto nulo, através da aplicação do art.º 123.º, n.º 3 do CPA, e o reconhecimento da qualidade de residente permanente, seriam susceptíveis de levar os outros a pensar erradamente que o bilhete de identidade de residente permanente da RAEM podia ser obtido por tal meio ilícito, e que não seria prejudicada a validade do BIR emitido depois de ser descortinado o caso. Se fosse assim, não resta dúvida que isto iria estimular os delinquentes a obter o BIR por meio fraudulento e ilícito, de modo que haveria mais “pais” que iam imitar a respectiva prática, ocultar dolosamente a verdade dos factos, e declarar falsamente a paternidade, para que os seus filhos obtivessem a indevida qualidade de residente de Macau, e em consequência, seria gravemente prejudicada a ordem pública e jurídica de Macau, lesado o interesse público, e trazido impacto para o regime de bilhete de identidade de residente consagrado na Lei Básica e nas leis vigentes da RAEM.

O Tribunal Colectivo continuou a apontar que, o exercício ou não do poder conferido pelo n.º 3 do art.º 123.º, isto é, “ressalvar” certos efeitos jurídicos decorrentes dos actos nulos, cabe no âmbito do poder discricionário do órgão administrativo. Nos casos em que a Administração actua no âmbito do poder discricionário, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos de erro manifesto ou total desrazoabilidade no seu exercício. In casu, sob o pressuposto da prossecução do interesse público, não se verifica nenhum erro manifesto ou grosseiro por parte da entidade recorrida no exercício do poder discricionário.

Pelo exposto, acordaram os juízes do Tribunal Colectivo em negar provimento aos recursos de A e E, mantendo-se os acórdãos recorridos.

Cfr. os Acórdãos do Tribunal de Última Instância, nos Processo n.º 53/2021 e n.º 56/2021.

 


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